Diálogos - Bice e Bia



DIÁLOGO 2 - "SOLIDÃO"

Bia – (cantando): “A solidão é fera, solidão devora, é amiga das horas, prima-irmã do tempo, e faz nossos relógios caminharem lentos, causando um descompasso no meu coração, solidão”.
Bice - Bote isso!
Bia – Estou botando...Vamos começar pelos clichês: “sozinho na multidão”. O que é que isso lhe inspira?...
Bice – Mesmo sendo clichê corresponde à realidade. Eu diria: sozinho entre os amigos e na família...Quando você se sente só, mesmo entre amigos, tem alguma coisa errada. Ou então, é aquele dia que você está sem saco. Mas isso ainda não é solidão.
Bia – Mas é diferente. A sensação de estar sem saco não é mesma de se sentir sozinha mesmo estando com amigos queridos. Porque a sensação de solidão não lhe permite nem se sentir sem saco. Você fica alheia a tudo. Discordo inclusive da música: no momento de solidão é como se não existisse tempo. Nada e nenhuma emoção aderisse ao corpo, à alma.

Bice – É complicado falar de solidão porque eu não estou conseguindo...Não vejo a solidão como um problema. Meu pai era a única figura da família para mim. Ele morreu quando eu tinha 8 anos e eu não senti solidão; senti tristeza, perda. Eu não me sinto mal com a solidão.
Bia – Mas o que é a solidão?
Bice – Solidão é querer estar (ou estar) com alguém, ou em algum lugar, ou com uma alguma ideia, e isso não dá em nada porque a solidão quer outra conversa com você.  
Bia – Mas o que é não dar em nada? O que seria dar em alguma coisa? Dar uma alegria?
Bice – Uma satisfação, um consolo, uma vibração...num sex shop na esquina. (risos)
Bia – Eu pensei nisso, esse papo de consolo e vibração só leva a um sex shop. (risos) Falando sério: pra mim é mais difícil conceituar solidão do que definir amor. Insisto: o que é solidão?
Bice – Solidão é algo que eu tenho a impressão que gosto. Explico: é você saber de si e se contentar consigo, independente da multidão que lhe cerque. A sua angústia é o seu próprio alimento, e se encaramos isso com egoísmo, é uma hora que conseguimos ter nós mesmos, todo e completo, para nós mesmos. Prazer ou desespero é sempre nosso. Quando eu digo que gosto da solidão é porque eu tenho ciúme de mim. Como não consigo, no dia a dia, me perceber a todo momento me atendendo, nesses momentos de solidão inexoráveis, aproveito para suprir essa falta quieta de ficar comigo.
Bia – Eu concordo com você, especialmente no que diz respeito a aproveitar os momentos de solidão inexorável. Tenho uma leitura talvez romântica da solidão, talvez porque eu também goste muito de ficar só. Não consigo associar solidão a tristeza, medo, melancolia etc. Mas tenho um pouco de medo da solidão quando penso nela como um sinônimo de ausência de afetos, de pessoas com quem tenho uma sintonia única, por exemplo, quando penso na hipótese de perder meus amigos antes, ser a última a morrer.
Bice – Neste momento, vou me sentir só e a solidão pode ou não se instalar. Vou sentir a falta dos amigos, vou achar que um ciclo está se encerrando, vou achar que terei que lembrar sozinha das nossas alegrias e tristezas, sem ter ninguém para acionar minha memória. Vou achar o que provavelmente todos acham no final da vida: que uma história talvez se perca. A solidão que falo é a solidão que não é a falta de amigo do lado - tanto que começamos com um clichê, solidão no meio da multidão - não é o diálogo interrompido, não é a ausência. Solidão é falta de chão, falta de teto. Que a perda de um amigo pode dar uma sensação de que realmente se abriu um buraco, mas tristeza é o nome mais apropriado para isso.
Bia – Na sua visão. Claro que tristeza é o primordial nessa hipótese funesta que levantei. Mas nessa situação que é extrema, essa tristeza chegaria ao paroxismo pelo DNA da própria tristez, porque junto com ela, estaria a sentença irrevogável de que nunca mais eu teria materializado os momentos em que eu abro mão de bom grado da solidão: quando estou com meus amigos.
Bice – Solidão para mim não é isso. Como falei, isso é tristeza. Solidão é como se eu morresse e continuasse viva. Todas as vezes que sinto solidão é porque, inicialmente, já senti uma perda de mim, momento em que fico mais fraca, e ela se instala. E ninguém, ninguém consegue fazer o milagre da ressurreição, somente eu mesma. Aí então é que aproveito esta ocasião para me ter, me pensar, me reconquistar e, finalmente, me dar vida outra vez.
Bia – Taí, a gente não concorda. Eu acho que a sua forma de ver a solidão – que é mesma forma ou parecida com a forma como você olha para o mundo – me parece muito mias densa do que a maneira que eu vejo, e se aproxima mais, em peso, em dureza, do conceito mais assustador que se costumou associar à solidão. Ouvindo você falar, eu tenho essa sensação - que me parece contraditória, a priori, com a sua declaração anterior de que gosta da solidão. Ouvindo agora, parece que o encontro com a solidão lhe mortifica e sempre está associado a uma espécie de tristeza.
Bice - Não fico triste. Fico centrada em mim, esqueço do meu dia a dia, de sempre estar tentando cuidar dos próximos, ou muitas vezes interferir na vida de quem amo - e que esta interferência desejo fazer cada vez menos, mas isso é outro assunto. Voltando. Me sinto mesmo mortificada e quando digo que até acho que gosto é porque, repetindo, me tenho nesse tempo, me vejo, me analiso e gosto muito da sensação de, em vida, renascer. Todas as vezes que a solidão escancaradamente bate para entrar e que me invade, é uma esgrima, um xadrez, de fazer com que ela tenha a força por um tempo suficiente para que não seja outra coisa, senão a própria solidão. E que eu no tempo exato entenda, aproveite a sua vinda, toda experiência que é fazê-la voltar para o seu lugar, satisfeita com sua intervenção, para que então eu possa me perceber voltando de novo para essa vida. É um jogo onde a partida não terminou. Foram lances que me fortaleceram e também fortaleceram a solidão. Sei que sua próxima jogada vai ser muito mais pesada. E assim é o jogo da vida. É bem verdade que, devido às circunstâncias, não só ela está forte, eu também estou, e tenho conseguido às vezes barrar essa voluntariedade de ela de querer dar um novo lance a qualquer hora.
Bia – Ok, xeque-mate para você.
Bice - Xeque-mate, não. Nem meu, nem dela.
Bia – Você não deixou eu completar...Minha referência ao xeque-mate é o mais metafórica possível. Quero dizer que dita dessa forma que você descreveu, a minha vontade de abrir a porta para a solidão só aumentou. Porque eu acho que a solidão é única interlocutora diante da qual não faz sentido e é absolutamente inútil usar certas máscaras que usamos para nos defender das mazelas da vida, entre elas a tristeza. Ela nem diz nada, mas a gente sabe que não faz sentido dizer inverdades só para nos proteger da dor. Acho que é por isso que muita gente tem medo da solidão: com ela não há universo paralelo possível para fugir à realidade de quem somos e como estamos no mundo.
Bice – Ela pode até não nos dizer nada, mas ela tem um objetivo centrado de nos mostrar  todos os nossos erros, sonhos perdidos e vontades, que desabam em sua cabeça como uma tempestade de verão, que você não espera. Falo tempestade de verão porque aposto que nós, humanos - fazendo referência ao jogo - somos bons jogadores, mas poderia dizer que muitas vezes ela vem querendo ser uma tsunami, onde somos totalmente impotentes. E aí você busca força para depois de tudo renascer e provar ou entender e aceitar seus erros, sonhos perdidos e vontades. Muitas vezes, a revolta de ser tomada de surpresa lhe dá até mesmo força para o vazio de um erro ou algo não feito ser resgatado com novos sonhos, e é isso que chamo de renascer.  
Bia – Ficou legal a sua linha de raciocínio. Me chamaram a atenção duas coisas. Uma que você fala em ser tomada de surpresa. Minha questão é entender se acontece com outras pessoas o que acontece comigo nos momentos em que sinto solidão. Às vezes me entrego voluntariamente para que ela se manifeste. Tenho todo um ritual e quase evoco a sua presença. E às vezes ela vem me visitar nos momentos mais inoportunos, como no meio de uma aula para quarenta pessoas. Minha questão para você é: acontece o mesmo com você? Mas não responda agora. A outra coisa que me chamou a atenção é que você descreveu o encontro com a solidão como uma espécie de momento de reciclagem e criação de novos sonhos e vontades. É assim para você sempre? Sempre nasce, além de você, algo novo desses encontros? Entendeu, Bibi?
Bice – Entediiiii....(risos) Está ficando bêbada. Começou a me chamar de Bibi.
Bia - Você sabe, quando eu bebo, o primeiro elo perdido é a dicção. Em vez de Bice, sai Bi-biii-ce...(risos).
Bice – Não. Nunca provoquei este jogo, nunca. Se provocada, encaro, não tem outro jeito. E também a solidão nunca chegou num momento de dinamismo profissional ou excitação, como numa sala de aula – ou no meu caso, numa reunião de trabalho. Acho que a minha rotina pesada de trabalho diário fecha meu corpo. É o que eu chamo de me distrair da solidão e todas as outras vicissitudes que provocam a alma. Inclusive, sinto ela chegando e dou algumas dribladas até que, finalmente, não consigo e ela me chama pra junto. Quanto à segunda pergunta, eu sempre renasço, mas não é sempre que, depois de uma presença forte como a da solidão, você consegue sair com novos sonhos. Às vezes, sim, às vezes, não. Quando não, já que falo que renasço, entendo e aceito o meu limite de ter perdido alguns sonhos e vontades e ter cometido alguns erros.
Bia – Meu Deus! É o protótipo do ser humano perfeito!
Bice – Não curta com a minha cara antes de ouvir todo meu argumento. Finalmente, entre erros, pecados e pecadinhos, quando a solidão vem, eu já estou quase resolvida, pois eu não preciso da solidão para enxergar meus erros e excessos. Mas como eu só tenho a mim mesma e tenho que me tolerar, geralmente, eu me perdôo. Eu me perdôo muito rápido, pois preciso continuar a viver e não posso fazer da solidão a reciclagem que você diz, pois seria passar dias com culpa. E a culpa é muito pior do que encarar a solidão. Se sinto qualquer culpa por ter falhado, por não ter alcançado algo, nada mais humano do que me achar humana.
Bia – Você é, realmente, uma humana muito metida...(risos). Dizer que quando a solidão está chegando você já está quase resolvida é de uma metidez ímpar. Mas como lhe conheço tempo suficiente para enxergar mais amiga querida do que a humana de nariz empinado que se resolve rápido e não precisa de conselhos nem da solidão, passemos. Uma palavra contra a qual travo há anos uma batalha árdua, diga-se de passagem, estou na frente: culpa. O que é a culpa? Ela é necessária para nós como um Código Penal o é para uma sociedade, para reprimir os excessos?
Bice – Posso ter parecido uma humana de nariz empinado, mas o que eu disse na realidade foi que eu preciso sobreviver e que, quando a solidão chega, ela, de fato, me cobra mais uma vez erros e sonhos perdidos. Os erros que eu digo já resolvidos quando cobrados mais uma vez servem para fixar a lição de não voltar a cometê-los, pois quando eu digo que eu mesma me perdôo, é uma questão de continuar andando sem o peso da culpa nas costas. É muito bom revê-los quando a solidão bate à porta, aí sim, no jogo eu busco muito mais elementos para que eu não volte a repeti-los. Agora, quanto aos sonhos não realizados, apesar de tentar colocá-los em um lugar inatingível para que não prejudiquem outras possibilidades, a solidão quando chega faz um belo trabalho para eu perceber a sua importância: se eles são, de fato, um recalque, uma frustração que precisam ser levados adiante a qualquer custo, ou se podem ser descartados.  
Bia – E a culpa?
Bice - Quanto à culpa, gostei demais da sua comparação com o código penal. A moral, a família, os bons costumes e alguns amigos – não todos – querem fazer dela o que você disse. Veja que estou falando apenas da culpa de atos humanos não criminalizados. Esses atos humanos não criminalizados e pelos quais nos sentimos culpados se quisermos compará-los a um código penal social, isso vai fazer da nossa vida um inferno. Por isso, brinco de falar que nessas horas de ter que continuar o dia a dia - e me livrar das culpas para me sentir leve e poder transitar, socialmente inclusive - é que eu mesma sou a primeira a me colocar no banco dos réus, me defender e me sentenciar, quase sempre inocente ou com uma pena branda.
Bia – Cínica!...(risos)
Bice - Antes que você continue: a questão é que a culpa que se sente nos momentos de solidão não está necessariamente, nem exclusivamente, ligada aos erros cometidos. Eu sinto mais culpa pelo que não fiz, por isso acho que existe esse movimento de 'querer fazer' do ser humano.
Bia – Mas se perdoa logo no seu tribunal condescendente, não é mesmo?... (risos)
Bice - Eu disse que isso é brincadeira, mas vale para ter uma boa noite de sono.
Bia – Então, boa noite, Bibi. (risos)
***


DIÁLOGO 1

Para conseguir instigar os nossos primeiros diálogos dignos de nota, a etapa inicial foi escolher bons motes. Dada a complexidade da missão, quase nos rendíamos ao fato de que um bom primeiro mote seria, exatamente este: a difícil arte de selecionar o primeiro mote.

Bice - E ai, cadê o mote? Eu fiz a tarefa hercúlea de ir buscar a cerveja e você não conseguiu nem pensar no primeiro mote?
Bia - Eu escrevi....aqui: “primeiro mote”...De verdade eu pensei, mas achei ruim.
Bice - Qual foi?
Bia - Decepção...
Bice - A gente vai começar assim, é?
Bia - Fica baixo astral, ok.
Bice - Vamos lá: amigos, música, livro, comida...homem, sacanagens de amigos...
Bia - Ai eu vou ficar baixo astral de novo...
Bice - ...profissão, sexo.
Bia – Devagar. Não temos gravador, vamos ter que digitar.
Bice - Ah, esse negócio não vai ser um diálogo...vai ser um “recordar é  viver”.
Bia - Vamos começar com que mote?...Amigos, não é? Foi o primeiro que você falou...Vou lhe ajudar: você consegue definir, em poucas palavras, o que é amizade?  Acho uma tarefa inglória, porque ou se fala uma sucessão de clichês ou a gente precisa falar muito para dar a dimensão da importância e da essência da amizade...
Bice - Ou então, não diz nada. É aquela pessoa que você quer sempre encontrar.
Bia - Sim, mas a pergunta que lhe fiz...queria mesmo lhe ouvir porque venho me surpreendendo com o fato de ter pessoas que considero amigos e amigas e com as quais eu tenho relações absolutamente diferentes. Não falo na questão da personalidade, porque isso cada um tem a sua mesmo. Falo na forma como me certifico que A é meu amigo e me ampara em momentos complicados, B é meu amigo, mas se mantém longe quando preciso e C é meu amigo apesar de nem discernir quando eu estou felicíssima ou acabei de sair de um enterro. Entende? Não consigo enxergar um conjunto de requisitos que, juntos, dão a alguém o titulo de amigo.
Bice - Esse C é ótimo!
Bia - Filha da mãe! Mas, falando sério...
Bice - Eu tenho uma amiga que separa amigos por assunto.
Bia - Você está de sacanagem...Mas, por exemplo?
Bice - Você quer avançar no diálogo ou problematizar? Não, é sério, vou lhe dizer agora: ela tem várias amigas e amigos. Com alguns, conversa sobre trabalho, com outras sobre casa etc. Quanto a mim, me coube viagens e homens, me sinto mais uma conselheira de assunto departamentalizado, obviamente...
Bia - Talvez essa sua amiga – que pensei que era você mesma – seja uma boa analogia para o meu caso, mas ela já separa os amigos a priori, então é o oposto do que acontece comigo. Eu percebo que, pela peculiaridade da relação que eu acabo estabelecendo com cada amigo, cada um passa a integrar um grupo, que se forma espontaneamente, compreendestes, engraçadinha?
Bice - Para mim, amigos são poucos e raros onde cabem todos os assuntos neles.
Bia - Não sou nem eu que separo, eu noto a divisão, noto como o vinculo com cada um se fortalece por um viés peculiar, entende? Mas não sou eu que “enquadro” os amigos em “categorias”. Só percebo que tenho com eles relações distintas entre si, mas todas de amizade, captou?
Bice - Você fala que separa os amigos por um viés peculiar, que as relações são distintas, mas todas de amizade, eu lhe entendo, mas talvez eu busque aquele amigo que possa parecer por qualquer viés e que, entre todas as relações distintas, ele sempre esteja.
Bia - Uau...Ficou bonito...
Em uníssono: 
- É difícil encontrar um amigo desses!
Bia – Eu acho que tenho...dois.
Bice – É aquela pessoa que você conhece, de repente, no trabalho ou em uma cachaça...
Bia – Numa cachaça?
Bice – Sim, quero dizer, num lugar inesperado. E bate aquela vontade de encontrar mais vezes e completamente sem compromisso, sem nem vontade de dizer o nome, onde você colocaria esse ser?
Bia – Eu não sei. Primeiro que você sabe bem que não dou o título de amigo assim para qualquer um...
Bice – Não estou falando de amigo, não intitulei nada.
Bia – E é o que então?
Bice – Pois é. Não acho que seja amigo de cara, mas quem é esse ser que você quer reencontrar, que lhe divertiu e lhe alegrou, e completamente sem compromisso e sem título?
Bia – Eu sei quem é, eu sei quem é: é uma boa companhia de farra.
Bice – Eu não falei só de farra, falei que você pode encontrar em qualquer lugar, no trabalho, na padaria. Mas pensando bem, na farra seria mais fácil, porque estamos mais abertos. Na padaria, questionaríamos apenas o preço do cacetinho, para início de conversa.
Bia – Cacetinho? É na padaria ou numa marcenaria esse encontro?
Bice – Palhaça, poderia ser cacetinho, bengala ou vara.
Bia – Arma branca, em resumo?
Bice – E como é que esse é nome do pão nosso de cada dia?
Bia – A vida é uma batalha...(risos)
Bice – Uma batalha bíblica!!..Bíblica, não, fálica.
Bia – Falando sério...Quem é finalmente essa pessoa?
Bice – Fui eu que lhe perguntei.
Bia – Pois é, mas eu não sei responder. Na verdade, queria entender que “figura” é essa, que papel ela exerce no seu repertório afetivo.
Bice – Pois eu vou lhe explicar: essas pessoas são as surpresas que a vida nos reserva...
Bia – Que frase clichê!
Bice – Mas, para ser surpreendido, é preciso estar exposto. É quase uma troca que você faz com seu mundo cotidiano: sair da calma e da certeza e, por um olhar, um dia, um drinque ou um cacetinho, ser surpreendido por um ser que potencialmente, em pouco tempo, você poderá chamar de amigo.
Bia – Eu acho que entendo, mas sou muito desconfiada com...
Bice – Com os acasos?
Bia – Não, com ...com a possibilidade de acolher como amigo alguém que, a rigor, não o será.
Bice – Como é que você sabe?
Bia – Eu não sei, mas meu medo é, não sei se é medo, mas não gosto de pensar que vou acreditar que está se formando uma amizade e no final descubro que não é nada disso, e isso macula algo que é muito importante para mim: a amizade.
Bice – De novo, pergunto: como é que você sabe? Como você pode saber que uma pessoa surgida do acaso pode ser ou não uma decepção? Você quer me dizer que não vai dar esta chance à vida? Como foi que nós nos conhecemos? Pelo que me lembro, foi numa mesa de restaurante, e as minhas referências não foram as melhores: “chefe” da sua amiga, isto em uma conversa de duas assalariadas.
Bia – Sim, mas a minha desconfiança foi a mesma.
Bice – Mas você arriscou? Creio que sim.
Bia – Hummm.
Bice – O que é isso?
Bia – Uma onomatopéia bovina depreciativa.
Bice – Ai ai.
Bia – Papo sério: arrisquei porque não me percebi arriscando. Simplesmente, me encantei pela companhia e o encantamento embota minhas desconfianças...
Bice – Mas, exatamente isso que eu disse: é aquela pessoa que você conhece de repente e que embota toda a lógica e o cuidado que nos acostumamos a ter com seres humanos. Como você classificaria o que lhe move, que lhe tira da sua razão e desponta ao longe um belo sinal de amizade, ainda que você não tenha mais idade para fazer amizade em playgrouds e parques?
Bia – Um nome específico? No seu caso, tenho um: exceção.
Bice – Como é que você sabe que aquilo é uma exceção?
Bia – Não sei, eu catalogo depois.
Bice – E a sensação do momento qual é?
Bia – É de uma desconfiança...
Bice – Benigna? Isso existe?
Bia – Não. Uma desconfiança, digamos, humilhada pela supremacia de uma confiança inexplicável, mas altiva, imponente, que intimida qualquer padrão, entendeu?
Bice - Então, não é uma exceção, é uma desconfiança massacrada pelo acaso?
Bia – Horrível isso: “massacrada”. É algo muito melhor, mais bonito. É a capacidade de se desvincular de um padrão comportamental em nome de emoções novas, do prazer de se descobrir agindo de forma diferente, sem culpa e sem exigência de agir com coerência.
Bice – Então, você aceita caminhar na estrada com um estranho. Mas, voltando ao horrível, veja a beleza de massacrar uma desconfiança: é tudo o que ela merece.
Bia – Vendo desta forma, há de fato uma beleza. 
Bice – Então é uma questão de semântica.
Bia – Mas, venha cá, a gente não pode exaurir essa discussão tomando como exemplo apenas a forma como nos conhecemos, que foi, acredito, uma exceção para as duas. Eu acho.
Bice – Eu agora: serviu como exemplo, mas de maneira alguma é único. Não vamos contabilizar as amizades feitas até a universidade, porque até aí ainda tínhamos tempo e inocência. Este exemplo se refere a nossa fase adulta e a nossa amizade não foi a única que aconteceu neste tempo em circunstâncias impostas pelo acaso. Digo: nem de todos os encontros floresceu uma amizade, mas posso afirmar com uma tímida certeza e grande alegria que, na maioria das vezes que eu tive a sensação de encontrar uma pessoa que valia a pena ver de novo, isso se confirmou.
Bia - O fato é que temos formas muito diferentes de lidar com o termo e o significado da palavra amizade...
Bice – Acho que hoje eu sou a policial boa e você é a má...
Bia (um tanto irritada) – Você, com três dias que me conhecia, me apresentou como uma “grande amiga”...
Bice – Eu sou visionária!
Bia – Essa é sempre a sua desculpa. Você não sabia que nos tornaríamos grandes amigas...Ou sabia mesmo?
Bice – Eu sou Escorpião, com Escorpião em Escorpião. Realmente, sou visionária.
Bia – É o que eu chamo de unidade de campanha zodiacal....
Bice – De fato, acho meu mapa astral meio monótono, por outro lado, me arvoro a ter certa segurança nas minhas impressões. Querendo lembrar que já errei feio, mas somente porque minha Lua estava em Marte! (risos)
Bia – Você está sacaneando. Não quero falar mais disso, não.
Bice – E o que você me diz dos amigos que se foram e quando você reencontra, parece que estavam com você até ontem? Aí, você vai deitar e rolar, porque aí é só romance, puro choro, nobreza e carinho.
Bia – Você é ridícula, aliás, ridícula mesmo. Ao que interessa: esta é a magia da verdadeira amizade, que se mantém intacta a despeito do tempo e da distância geográfica. É como chegar em casa depois de uma longa viagem e, mesmo sem se lembrar de como deixou os móveis ou que livro estava sobre a mesa, reconhecer que ali é seu ninho, se sentir abrigada, confortável, aconchegada pelo lençol velhinho com cheiro de alfazema.
Bice – Venha cá: sentiu um efeito Alves & Cia? Realmente, a sua descrição dá para sentir um acréscimo de consideração por si mesma e pelos velhos amigos que compartilharem esta casa decorada, estilo ancien régime...
Bia – Engraçadinha...
Bice – Deixe-me continuar...
Bia – Ninguém fala assim: “deixe-me continuar”..
Bice – Acabei de falar...Continuando: é muito bom ter uma amiga quando reencontrada, apesar das mudanças, reconhece o que sempre fomos.
Bia – Concordamos, foi? Que inferno! Ficou péssimo porque acabou o assunto.
Bice – Acabou nada. E aquele grande amigo que, depois de anos, você reencontra e os belos livros de filosofia e romance que você deixara fora de lugar parecem agora uma coleção de revista de consultório médico? E aquele lençol velho, cada fiapo tenha se transformado em espinho? Como é que você faz para se livrar desse velho amigo?
Bia - Eu estou vivendo exatamente isso: a dificuldade de me livrar do velho amigo tipo lençol porco-espinho. O pior é quando há outros amigos em comum que fatalmente mencionam esse velho amigo e, pior, você acaba se deparando com ele e tem a estranha sensação de que está vendo...
Bice – Baby, eu não estou falando de um amigo próximo que lhe magoou, estou falando do seu melhor amigo de infância ou de adolescência, que se afastou por qualquer circunstância, e que de repente reaparece e não lembra nem de longe aquele amigo que foi um dia. Como é que você desconstrói essa amizade dentro de você?
Bia – É fácil. Pelo menos para mim, que não sou assim tão dada a achar fácil me desvincular de afetos. Acho que eu não passo mais de um dia lamentando a frustração de não resgatar aquele vínculo do jeito que ele era. Primeiro porque já existe uma expectativa de que esse reencontro seja uma coisa estranha, anacrônica. Sei que mudamos: eu e ele.
Bice – Acho que sou uma pessoa anacrônica. Todas as vezes em que reencontrei amigos do passado me vesti de uma alma daqueles tempos.
Bia – Hummm. Onomatopéia bovina depreciativa e irônica parte 2. Uma alma velha, uma amizade velha e a dura constatação: envelhecemos todos!
Bice – Só porque você me fez rir, não estou aborrecida. Continuando: reencontrei os amigos com o espírito de resgatar o último encontro e virmos juntos, passo a passo, reconstruindo nossa história a partir do último ponto. Por isso, para mim não é nada fácil perceber que perdi um amigo para a vida, lamento esta frustração por mais de um dia.
Bia – Duvido! Você não gastaria seu tempo com isso. Essa coisa dessa película, sabe?, efeito sépia, não lhe impressiona, duvido!
Bice – Não é um lamento romanesco ou cinematográfico, é um lamento sobre os fatos e a metafísica dos encontros....
Bia – Ah, então eu não estava errada, você lamenta de uma forma...
Bice – Pré-existencial.
Bia –Você lamenta conceitualmente  e não emocionalmente.
Bice – E foi sem emoção que eu falei?
Bia – Mas os conceitos lhe emocionam.
Bice – A cerveja acabou, e o mote está cansando.
Bia – E aí? Vamos mudar de mote?
Bice – E para malte!
Bia – Então, vamos falar de música! Música é um tema difícil...
Bice – Não acho...ou eu gosto ou eu não gosto.
Bia – Talvez a minha dificuldade resida exatamente no fato de que não tenho uma relação tão binária com a música.
Bice – Posso melhorar ainda mais a minha relação com a música: geralmente, não gosto. Não troco o meu silêncio por nenhum ruído, barulhinho bom ou sinfonia consagrada.
Bia – Mas aí é que está: minha intimidade com a música é tamanha que nem separo mais silêncio e música, mas algumas canções fazem um barulho enorme dentro de mim e não há nenhuma regra para que isso aconteça.
Bice – Você é um caso dos loucos por música. Já cansei, inúmeras vezes, de lhe ver falando, perguntando, respondendo, não importa a circunstância, com estrofes completas de músicas, e com a frase final “não é mesmo?”
Bia – Pois acabei de pensar em uma: “o pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar?” Eu gosto disso. Alguém já deve ter dito isso, mas vou repetir: a música é a poesia em movimento. E eu sinto uma sensação Alves&Cia quando penso que, de algum modo, contaminei você com isso...um pouquinho, mas contaminei.
Bice - É por isso que, definitivamente, prefiro ler. A poesia fica ali quieta. Depende do meu entusiasmo e ênfase em ler, mais ou menos demoradamente controlar as páginas, repetir as estrofes silenciosamente na minha cabeça quantas vezes eu queira, ou rapidamente me livrar delas num piscar de olhos.
Bia – De fato, nós somos diferentes. Eu gosto, justamente, desse bailado imprevisível das estrofes, não sei para onde elas vão e muito menos para aonde podem me levar. Essa surpresa dançante da poesia é que me embala quando ouço uma música.
Bice – Não quero nada me levando sem o meu desejo, e nada que eu não possa interromper quando me incomode ou não me agrade. Falando assim, até parece que eu não posso desligar o som, mas deitada, com um livro, é muito mais poético, simplesmente, virar a página.
Bia – Eu acho que dá o mesmo trabalho...
Bice – Aí é que está: virar a página do livro não é trabalho, é condição de continuidade.
Bia – Mas o estrago já está feito, seja pela poesia estática ou em movimento. A rigor, a entrega para uma canção ou uma página de livro é semelhante: é se lançar de um abismo. Mesmo a música que eu já ouvi dezenas de vezes é sempre um abismo porque tenho a sensação de que há sempre um detalhe da estrofe que não ouvi com o corpo todo e quando ouço, o tremor interno é inédito...
Bice – Você pirou aí. Estamos falando da primeira sensação de agradar ou não. Concordo que são dois abismos, mas estamos falando de escapar deles. Estou falando de escape.
Bia – Sigamos.
Bice – Mesmo resistindo, preferindo o silêncio, há momentos que preciso de música como se precisa de água. Para matar uma sede, digerir melhor uma refeição e, como vocês gostam de falar, ter uma trilha sonora para lembrar.
Bia – Não vou dizer o que estou pensando. Mas, a propósito: vocês quem, cara pálida?
Bice – Vocês, os românticos.
Bia – Eu sabia! Você se refere a pessoas românticas como se fossem bichinhos estranhinhos, muito frágeis e desintegráveis facilmente.
Bice – Pois não é isso mesmo que vocês são?? Uma fauna que se mostra irresistível, fazendo com que todos nós tenhamos que exercitar diariamente a razão, e lembrar que existe um mundo real necessário, contingente e desesperado por ações que nem sempre cabem numa rima.
Bia – Da série: como acabar com o romantismo em três linhas, é isso? Você está bastante equivocada com essa visão de que românticos não sabem ou não conseguem adotar ações num “mundo real necessário”. Eles, ou melhor, nós, os românticos, só temos a sapiência de escapar desse mundo necessário para transitarmos num mundo igualmente real e muito, mas muito mais atraente.
Bice – Começamos a falar de dimensões, sonhos e particularidades. Muito fácil, gostoso, mas pouco...
Bia – Produtivo?
Bice – Palpável. A música distrai. A música, quando escutada com cuidado, lhe envolve e lhe convence, o que nem sempre nos cai bem.
Bia – Então, é isso? A música lhe mostra o mundo atraente do qual falei, mas você prefere as certezas do “mundo real necessário”?
Bice – Certeza e atração andam juntas e são reais.
Bia – Engraçado ouvir isso de uma pessoa que adora discutir coisas metafísicas e questionar a própria condição humana...
Bice – Isso mesmo: certeza e atração andam juntas. Somos atraídos para confirmar nossas certezas. Esta é a atração que falo e que me acompanha. Toda vez que precisamos confirmar, antes, duvidamos, e assim questionamos e condicionamos sempre as nossas certezas.
Bia – E você, que fala tanto em ser surpreendida e de como gosta disso, faz uma apologia a certezas e a atração por elas.
Bice – E não é uma surpresa, uma vez atraída, você duvidar da sua certeza?
Bia – Vamos mudar de assunto? Falávamos de música...
Bice – Sabe? Música não me causa surpresa nem me chateia. O que me faz não escutá-la não é nem mesmo a minha preferência pelo silêncio. A música me influencia. Sério. Falei em trilha sonora dos românticos, mas é claro que, a depender de quanto eu esteja relaxada, eu faço mesmo um filme no ritmo da música e isso é louco, é incompreensível e muitas vezes dá a maior ressaca moral.
Bia – Entendo, sério mesmo, entendo. Mas não tenho essa relação visceral que você tem. Engraçado me ouvir dizendo isso porque acho que tenho uma relação visceral com a música, acho que a diferença é que ela, a relação, é mais mansa porque sou uma pessoa mais mansa.
Bice – Lhe digo: é muito bom quando essa trilha sonora tem protagonistas e momentos corretos.
Bia – Pensei agora, apesar de já ter pensado nisso antes: não sei como seria minha vida se não houvesse música. Acho que seria uma espécie de escuridão.
Bice – A escuridão para você me lembra a relação música e silêncio, e vou lhe dizer: a pessoa certa, no momento certo, na mais completa escuridão e silêncio também é muito bom.
Bia – Acho que você está estranha. Acho que é a música que estamos ouvindo. Mas, é claro que o que você disse vai se unir aos pouquíssimos consensos que teremos em toda a vida...(risos)
Bice – É a música, o malte, o maltrato, o melhor, o método...
Bia – Acabou a aliteração? Você está morta...A música lhe deu um ippon!...(risos)
Mas, voltando àquela história de surpresas, não me convenci com aquela explicação de que a surpresa está no movimento de buscar se certificar de suas certezas, porque acho que a surpresa vem de fora, rompe com a bolha das certezas, por isso mesmo surpreende.
Bice – Quem rompe a bolha das certezas não é a surpresa, é a dúvida, que, concomitantemente, surpreende.
Bia – É assim que você nutre as surpresas da sua vida, nesse ciclo?
Bice – Não. Dúvidas rompem ciclos e são apenas uma das maneiras de se surpreender. Não quero exaurir a palavra surpresa como sinônimo de dúvida. Mas a gente acabou não falando de música. Me diga aí uma música ou algumas músicas que você levaria num ipod para uma ilha deserta?
Bia – Depende, se houvesse chance de voltar para o continente, escolheria com menor cuidado, mas se fosse para ficar nessa ilha por tempo indeterminado, levaria aquelas que de algum modo traduzissem o melhor e o pior da minha vida para não esquecer o que é viver.
Bice – Vou ser mais clara na minha pergunta: tudo bem que num ipod você pode levar o melhor e o pior para não esquecer de uma geração, mas me diga: em uma fita K-7 o que você levaria? Lembro que no máximo cabem umas vinte músicas.
Bia – De cada lado, não é?
Bice – E tem lado? É que nem gente, pra frente e para trás?
Bia – Por quê? Você usa os dois lados?
Bice – Não, eu sou uma mulher CD e pendrive... (risos)
Bia – Só usa uma entrada USB? Tá vendo? Eu levaria mais músicas do que você... (risos)
Bice – Falar de música é um caleidoscópio, se fala de tudo...Mas quais músicas você levaria?
Bia – Acho que seria a maior angústia de minha vida. Não sei, não me angustie com essa questão: é como se você me perguntasse se eu levaria água ou comida. E você levaria quais livros?
Bice – Pare com isso. O assunto é música. Saia justa só fica bem em você.
Bia – Mas não estou conseguindo respirar com essa que você me deu...Três livros pelo menos...Diga...
Bice – Um todo em branco e um lápis. Outro...
Bia – Sim, estou esperando, ou melhor, estou envelhecendo.
Bice – Que merda, não quero mais não.
Bia – Desistiu do mote?
Bice – Mas o mote é música. De qualquer maneira, selecionaria Borges, Cortázar, Machado de Assis, Cervantes, Jack London e, para não ter dúvidas queimaria todos de Nietzsche para não ter tentação nenhuma e acabar transformando essa ilha, certamente paradisíaca, num inferno.
Bia – Por autor ou intérprete, também sei dizer o que levaria de música: Chico Buarque, Roberto Carlos interpretado por outrem, Bethânia, claro...
Bice – E qual CD você queimaria?
Bia – Queimaria o CD de Etta James.
Bice – Eta! Radicalizou a moça.
Bia – E você?
Bice – Levaria as músicas de Ata-me e, provavelmente, todas as dos filmes de Almodóvar. Acho que se ele fosse o censor mundial de músicas, eu seria muito mais afeita a música.
Bia – Sim, mas qual o que você queimaria?
Bice – Todas que de uma maneira ou de outra fossem uma trilha sonora de um caminho sem volta ou um caminho sonoro de uma trilha sem fim.
Bia – Isso é muito brega. Você anda lendo Adelaide Carraro e Paulo Coelho?
Bice – Está ficando chato...
Bia - É vamos acabar com esse papo São João: e você vai queimar o quê? E o que entraria na sua fogueira?
Bice - Eu vou é jogar um rojão, uma bomba, no mínimo um traque bebé...

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