Por Bice Triz
Consigo imaginar um mundo sem cores,
Por Bice Triz
Quando criança gostava de ganhar presentes, mas não todos. Boneca não gostava, só valia pelo fato de não incomodar como os humanos incomodavam, era assim meio planta. Mas, aí é que eu não gostava, não dava para regar, semear, muito menos acompanhar o seu crescimento; boneca era como planta de plástico. Panelinhas, colherinhas e companhia eram os meus prediletos, fazia comida no jardim e também na pequena farmácia da casa. Fazia culinária com plantas e remédios, inventava refeições e experimentava todas.
Livros eram meus presentes prediletos. Quase enlouqueci quando li de Tom Soweyer. Algumas aventuras do Sitio do Pica Pau Amarelo também me marcaram. A Coleção Bom Apetite da minha mãe acho que li toda, até hoje gosto de ler receitas culinárias e bulas de remédios.
Na juventude comecei a ler os clássicos. Tinha uma biblioteca em casa feita pelo meu pai, que era admirada por todos da família, cada um ao seu modo. Minha mãe adorava a decoração, a estante larga e alta era perfeita para separar a sala de estar da sala de jantar. Quando elogiavam a coleção pela qualidade ou quantidade, ela respondia prazerosamente, quase com um auto-elogio por saber escolher o marido ou por ter sido a escolhida do marido: - O falecido gostava muito de livros.
A faxineira achava “tão bonito aqueles livros, tudinho um atrás do outro”. Completava que era bom de limpar, era só passar o espanador, melhor que roupa e banheiro.
O irmão caçula admirava a sua própria estratégia e desprendimento, colocou os livros mais pesados embaixo e os mais leves em cima, para dar estabilidade ao móvel. Anunciando a todos que os únicos livros que lia, sobre guerras, estavam no alto, mas não tinha problema ele faria o esforço. Pegou duas grandes coleções sobre a história dos homens e sua religiosidade. Deixou as duas empilhadas no chão e toda vez que lhe interessava as guerras, pisava em cima dos livros sagrados e da humanidade. Sempre dizia que gostaria de ter esses livros, o que eu concordo. Tenho a impressão que ele lia não porque gostasse, mas para entender o que tanto lhe assustava.
O mais velho, que já tinha filhos ameaçou levar os livros para sua casa, disse que ter uma estante completa com diversas coleções seria um exemplo para os filhos e ajudaria na educação dos rebentos. Interromperam seu discurso imediatamente: - Você foi criado assistindo nosso pai ler todos os dias e ao lado de tantos livros, e, no entanto, quando foi que você leu algum?
Nossa mãe percebeu que estávamos inventariando a estante, e foi decisiva: - cada filho escolhe um lote em rodízio. E assim fizemos. Separamos os vários lotes e começamos a dividir, com a promessa que compraríamos vasos, e bibelôs para cobrir a nudez da estante.
O irmão mais velho e com filhos escolheram uma coleção enorme de histórias da juventude que muito ajudaram na minha formação de leitora, outro pegou uma de ciências e o outro a coleção sobre a guerra, eu escolhi uma coletânea de romances de grandes escritores universais. De novo, o mais velho pegou a Barsa, para pesquisa dos filhos, o outro a Naturama seguindo a linha da ciência, o pacifico quis desta vez os grandes personagens da historia e religião, acho que religião também lhe assusta, e eu fiquei com a coleção de Machado de Assis, e por aí foi. Na quinta rodada, escolhi uma coletânea de filósofos ocidentais. E chegando mais uma vez a minha chance de escolher, ainda sobrava a coleção de romances históricos. Na última rodada, ainda arrematei uma coletânea de livros que foram premio Nobel de literatura. Todos ficamos satisfeitos.
Entre os escritores que descobri, desta vez fiquei impressionada com Herman Hesse. Sartre me fez sentir engajada, mas os “outros” dele são mais distantes que os meus. Li Ana Terra e quase morro desconsolada. Achei “O Jogador” um conto da carochinha, desta vez com a vovozinha forte e poderosa, o mal, o bem e o vício. Mais tarde li os Irmãos Karamazov, Dostoievski se tornou um dos escritores mais importantes na minha formação jovem. Não parece que os dois livros foram escritos pela mesma pessoa.
Li muitos outros, mas não se trata de um roteiro de leitura a minha narrativa, mas de uma conversa sobre o livro em outros aspectos. O livro de presente.
Hoje, prefiro dar presente a recebê-los. E se for me presentear, por favor, que seja um bom livro, aliás ando anunciado aos quatro ventos.
Estava na fila de autógrafos no lançamento de um livro, quando a pessoa que estava à minha frente respondeu para a amiga que lhe acompanhava: “Estou comprando vários livros porque gosto de dar como presente.”
Sou relativamente tímida, quase nunca me reporto a um desconhecido para fazer uma brincadeira, mas desta vez não resisti:
– Sendo assim, vou lhe convidar para o meu aniversário!
Por sorte ele era o próximo a receber o autógrafo, desfazendo desta forma qualquer possibilidade de iniciar uma conversa sobre amenidades.
Eu e o desconhecido gostamos de dar e ganhar livros de presente, o que não aproxima ninguém e nem torna a tarefa simples.
Tento incentivar nos meus filhos o hábito da leitura, uma boa fórmula é dar de presente livros aos seus amigos e estimular a todos, formar uma turminha de amigos que gostem de livros, certo? Errado. Foi no mínimo bizarro escutar de um rebento, de forma categórica que eles (meus filhos) pareciam malucos, dando sempre livros de presente a todos os colegas da sua escola. E, que eu precisava ver a cara dos aniversariantes quando viam o presente, alguns já reconheciam pela embalagem e nem abriam, simplesmente jogava em qualquer lugar, outros conferiam e só faltavam jogar pela janela. Não soube o que responder à pergunta do meu filho: Por que não uma bola ou um “game”? Realmente, era tão mais simples.
Gostar de dar livros indistintamente é uma aventura. Dar para quem gosta porque sabe que vai agradar é o que se quer. Dar a um simpático, mas ainda desconhecido para aproximar se mostrando um pouco e quem sabe criando coincidências é uma tentativa, é uma expectativa. Dar apostando que vai ser bom, e que se a essa altura o presenteado ainda não gosta de livros é porque ninguém, nem ele mesmo promoveu o encontro com o primeiro amor literário, é um risco lotérico.
Ao contrário de gente, podemos amar vários livros, e melhor, vários ao mesmo tempo, sem que ninguém despreparado lhe reduza, lhe exaura em adjetivos mesquinhos.
Continuo a comprar livros para dar de presente. Certa anfitriã recebe o mimo com delicadeza: - Que bacana! Muito interessante, vistosa a capa!
Pronto, acabou, não foi dessa vez. Mas, nós os amantes dos livros não desistimos facilmente, e um novo convite renova o desejo. Apaixonados, esquecemos todos os foras, todos os desencontros e partimos para mais uma conquista. Desta vez, vou ligar para a melhor amiga da aniversariante e saber o que ela quer de presente. No telefonema, perguntei uma sugestão de presente, o que ela gostava... De repente, involuntariamente, indaguei: - Será que ela não gosta de livros, qual o seu estilo? Minutos depois minha amiga retorna o telefonema, muito educada disse que não precisava me preocupar e que para a anfitriã o importante era a minha presença. Sim, mas quanto ao livro? Insisti em perguntar. Foi desonrante, respondeu que o ano passado eu tinha dado um livro de presente que ficava na prateleira da casa e que ela sempre lia! E se eu quisesse dar outro ela colocaria junto, sugerindo que fosse azul!!
De certa forma, têm hora, lugar e gente para falar sobre livros. Sei que existem muitos casos de sucesso, eu mesma coleciono vários, mas não é o momento de falar das alegrias de dar e receber livros. Estou querendo me livrar desses bizarros acontecimentos, e uma vez escritos, esqueço-os rapidamente. Pois bem, outro dia estava em meu trabalho, faço algo que gosto, e por enquanto é bom, tenho a desculpa perfeita para não largar tudo e me dedicar integralmente aos livros, a lê-los e escrevê-los, quem sabe.
Estávamos no refeitório da empresa, almoçava, acho que tinha uns cinco ou seis colegas e começamos a falar de livros. Alguns comentavam sobre um romance de sucesso, indicado na lista das revistas semanais. Quando o assunto sobre o badalado e midiático livro já começava a morrer, e sem nenhum sinal que viesse outro título substituir o silêncio constrangedor dos dessemelhantes, um dos presentes anunciou que, também, já tinha lido um livro...! Ninguém se arriscou a perguntar qual. Eu me levantei, não fiquei para a sobremesa, lembrei que teria uma festa à noite e queria levar um presente para o anfitrião, desta vez, compraria um bom whisky. Quem quiser que compre os seus próprios livros e tenha o direito de queimar suas bibliotecas.
Por Bia Triz
Nasceu? Quantos quilos? É saudável? Parece com quem: o pai, a mãe, um joelho? Em tempos de outrora, poderíamos acrescentar outra: é menino ou menina? Hoje, com a tecnologia a pergunta é a mesma, mas a confirmação chega bem antes do rebento. Nesses tempos modernos, a resposta às vezes é pós-moderna: “quando ele crescer, ele decide”. A vida começa e termina com perguntas. E essa criança fofinha já está na escolinha? – questiona a vizinha de cabelo acaju que é louca por um diminutivo e gasta todos quando encontra alguém no elevador. Quantos aninhos você tem? Está em que série? E você quer ser o quê quando crescer, bonequinha? – aprofunda a investigação quando o elevador ainda nem chegou ao quarto andar. Na adolescência, a sanha interrogativa continua. Já está namorando? E a faculdade começa quando? Medicina? Não. Ah, geografia, sei. Quando é o casório? Vocês não querem filhos? Por enquanto não, sei, sei. Que barriga linda! É para quando? Novembro? Em janeiro: vão ficar só com esse ou vão tentar uma menininha? Na vida adulta, as artimanhas, a frequência e o objetivo das interrogações variam, a hipocrisia aumenta. O que não muda é a curiosidade. O lado bom é que as perguntas alheias cada vez afetam menos os seus dias de adulto. O diabo são as próprias questões. Quais? Você sabe porque tem as suas. Por ora, importa saber que algumas perguntas devem ser evitadas. Posso lhe dar um beijo? Outras não devem ser feitas. Você me ama? Há também aquelas que nunca devem ser feitas. Você ainda me ama? – dá ideia de que até você concorda que já deu. As indagações seguem e transcendem até mesmo o fim da vida. Morreu de quê? A rigor, a resposta não tem a mínima relevância, mas a vontade humana de interrogar parece não cessar nunca. Concorda?
MANGA
Por Bice Triz
Passou a infância com os avós, em um sitio perto da capital. Desde muito cedo reparava os contrastes do mundo. Na estrada para escola observava meninas da sua idade de minissaias, com blusas curtas e sandálias menores que os pés, percebia que todas as partes do corpo estavam de certa forma à mostra, parecia faltar muito e sobrar algo, algo interessante. Sempre tinha uma ou duas na beira da estrada, enquanto as outras, geralmente juntas, conversavam agachadas com as pernas confortavelmente abertas. Às vezes, passava e via uma que parecia conversar com um motorista, outras pegavam carona ou chegavam de caminhões, carros, táxis, ônibus e até mesmo de motos. Perguntou ao seu avô, lânguida e inocentemente o que faziam e para onde iam aquelas meninas, ouviu que não iam a lugar nenhum, e que com o que faziam giravam no mesmo lugar sem esperança de vida, ouviu, também, sobre a culpa do governo, mas que algumas estavam ali porque gostavam, e que não tinha quem desse jeito. – Algumas mulheres já nascem perdidas, minha neta. É a natureza... Interrompeu a frase ao olhar pelo retrovisor, e não reconhecer a menina que lhe escutava, muito confortavelmente, no banco de trás, num misto de prazer e malicia, ela confirmava com a cabeça, a força da natureza sobre aquelas meninas. Na casa dos avós era total o silêncio à noite, o avô mesmo aposentado às vezes se atrasava para o almoço ou jantar. Percebeu que as meninas causavam um certo constrangimento ao avô, e um incomodo à avó.
Passou a infância com os avós, em um sitio perto da capital. Desde muito cedo reparava os contrastes do mundo. Na estrada para escola observava meninas da sua idade de minissaias, com blusas curtas e sandálias menores que os pés, percebia que todas as partes do corpo estavam de certa forma à mostra, parecia faltar muito e sobrar algo, algo interessante. Sempre tinha uma ou duas na beira da estrada, enquanto as outras, geralmente juntas, conversavam agachadas com as pernas confortavelmente abertas. Às vezes, passava e via uma que parecia conversar com um motorista, outras pegavam carona ou chegavam de caminhões, carros, táxis, ônibus e até mesmo de motos. Perguntou ao seu avô, lânguida e inocentemente o que faziam e para onde iam aquelas meninas, ouviu que não iam a lugar nenhum, e que com o que faziam giravam no mesmo lugar sem esperança de vida, ouviu, também, sobre a culpa do governo, mas que algumas estavam ali porque gostavam, e que não tinha quem desse jeito. – Algumas mulheres já nascem perdidas, minha neta. É a natureza... Interrompeu a frase ao olhar pelo retrovisor, e não reconhecer a menina que lhe escutava, muito confortavelmente, no banco de trás, num misto de prazer e malicia, ela confirmava com a cabeça, a força da natureza sobre aquelas meninas. Na casa dos avós era total o silêncio à noite, o avô mesmo aposentado às vezes se atrasava para o almoço ou jantar. Percebeu que as meninas causavam um certo constrangimento ao avô, e um incomodo à avó.
O final de semana passava na casa de seus pais, nestes dias, a noite parecia mais longa. O casal bebia e conversava até tarde, e quando o dia começava a clarear, a madrugada, convidada pelos sussurros e sorrisos da longa noite, parecia mais alegre. Gostava de ouvir os sons do amor e do sexo, mesmo o som mais físico e vivo, era canção e lhe ninava os suspiros. Mesmo sozinha, aconchegava-se com o travesseiro, deixava uma perna para fora da cama, que caía ajoelhada no chão, e como em uma longa missa, colocava suas mãos, não entre os lábios, mas entre as coxas de onde rezava sua oração. Usava colares com pingentes de anjos e outros santos que se encaixavam entre os peitos, mostrando um atrativo altar. O piercing com uma pequena figa abrigada em seu umbigo protegia a menina e testava a mulher em suas noites de sono.
Sabia sorrir para homens e mulheres, instintivamente era como se, distinguindo os diferentes hormônios, agradecesse aos Deuses por entender os desejos do próximo e senti-los tão minuciosamente em seu corpo. Uma mulher abençoada, e de uma sensualidade ecumênica.
À tarde saiu andando para aula de violão, que era em um sítio próximo ao de seus avós. No caminho, uma estrada de barro, ia pensando na sua vontade, no colega sem ritmo e sem som. Caminhava, parava, ia sem pressa, colhia pitangas, chutava pedras, e cheirava as folhas que partia bem próximas ao nariz. Avistou uma bela manga, correu e se abaixou para pegá-la. Ao ficar nesta posição lembrou das meninas agachadas na estrada, assim ficou sentindo um estranho prazer que esta posição lhe causava, e antes de pegar a fruta, olhou seus dedos, esqueceu o violão, e se tocou, sentindo-se, também, madura. Chupava deliciosamente a manga naquela posição, as mãos lambuzadas de suco e mel deslizavam com todos os dedos sobre sua fruta, junto à boca e entre as pernas. Seu corpo estava doce e dourado, tremia calmamente. Abaixando a cabeça, abraçou as pernas, e como para conter-se e contentar-se, fechou os olhos e beijou seu joelho intensa e demoradamente, no seu ritmo, à sua vontade. Beijou-o por dentro e por fora, arranhou-o levemente com os dentes e retornando do beijo, levou a manga de volta à boca. Neste momento, percebeu que alguém mais se deliciava com a cena, um caminhão parado e um olhar que tudo via e que tudo sentia. Sorriu, muito mais para aumentar o prazer de quem lhe via, ela mesma não tinha dúvidas. Levantou-se calmamente, seguiu em direção, e próxima da janela, ainda lambendo os dedos melados perguntou se ele, também, gostava de manga.
UMA VEZ EU LI UM LIVRO...
Por Bice Triz
Quando escuto esta frase volto todos os sentidos esperando um pouco mais do desenrolar da história, nomes, lugares, vidas. Sei que nem sempre vale a mobilização para saber o conteúdo de um livro, mas é involuntária a minha mudança sensorial, escuto o início da frase e aguardo o seu final como a próxima respiração, batida do coração, piscada de cisco do olho, preciso um pouco mais.
Da última vez que escutei, como sempre, parei para aguardar um natural complemento...
... Se passava no deserto da Namíbia, o Kalahari...
... Era uma história cheia de humor de tentativas de suicídio frustradas...
... Com aforismos de um Zaratrusta em busca da verdade...
...De intrigadas tramas familiares e sociais na Rússia tzarista do século XVIII...
... Narrando um casamento que se acaba por meias verdades, a angustia da separação, a depressão de ter sido enganada, o fim do príncipe herói e nascimento da mulher...
... Sobre a tentativa de se terminar um roteiro e fazer o filme, onde a autora luta com todas as forças para o roteiro não virar diário e se tornar infinito enquanto ela dure...
... Mostrando a crueldade dos tempos dos coronéis...
... Contava a luta da sobrevivência de meninos de ruas, sendo criados por eles mesmos, suas alegrias amores e algozes...
... De fantasias e realizações sensuais de uma mulher cuja sensualidade a coloca a frente seu tempo...
... Que descrevia com fino e cruel humor uma bela e inculta jovem a ser moldada por um milionário...
... De uma humana ingenuidade na descrição do mar quando visto pela primeira vez...
... De poesia...
... De cordel...
... De contos imaginários...
... De um jornalista narrando as atrocidades dos bastidores do poder e seus bacanais...
... De histórias árabes sem fim...
... Sobre uma cidadezinha da América Latina que parece mágica...
... De suspense, terror, mitologia, filosofia, qualquer desenrolar era esperado, já estava ficando sem fôlego, meu coração batendo apertado e com um cisco que só agigantava em meus olhos, esperava que ele completasse a frase.
Esta frase tem continuação, pensava já desfalecendo, quando percebi que não tinha reticência nem mesmo uma vírgula, ele havia colocado um ponto final:
Uma vez eu li um livro.
Neste momento estava almoçando no refeitório da empresa, e conversava com uma colega sobre o último livro de Gabriel Garcia Marques, quando ele de outra mesa lançou o desafio acima descrito: uma frase que não fazia sentido precisava de complemento. Para acabar o mal estar, e também para retomar ao meu almoço, perguntei:
Mas qual livro?
Ah, desses que vocês estão falando que lêem.
E mais uma vez ponto final.
Fiquei espantada com a conclusão do assunto, a frase existia sem complemento, ponto.
Para não colocar um ponto final totalmente inapropriado ao meu almoço, encerrei a conversa. Terminei a salada, ajuizada e faminta, coloquei reticências ao invés de um ponto, e fui desenrolando a história até o ponto que interessava, a leitora faminta foi para o prato quente que sustenta, e nos deixa prontos para o desenlace final de um belo romance gastronômico, a sobremesa. Isto sim é almoçar, contar, completar e complementar, lembrei do cafezinho.
A LIBERDADE É INOCENTE
Por Bice Triz
O que solta e
dá limite,
é a vontade
que me quer inteira e
deixa-me metade
Ela...
Que nos move e
Nos demove
Que nos ameaça
E nos torna caça
Diz não e
Diz sim
Para deixar ir
não perseguir
Para calar,
não assustar,
Para conjugar baixinho
o verbo amar
CONVERSA AGORA, SÓ COM CONTEÚDO
Por Bia Triz
A chamada sociedade da informação nos proporciona muitas coisas boas, mas também tem nos tirado experiências e prazeres valiosíssimos. Por exemplo, hoje quase não se consegue mais puxar uma daquelas conversas amenas, falar um monte de clichê do tipo ‘não sei onde a gente vai parar com essa violência’, ‘político é tudo ladrão’ ou ‘nunca passei tanto calor na primavera como neste ano’. Com tanta informação disponível na internet, tanto smartphone, tanto programa de rádio, todo mundo anda medianamente informado sobre quase tudo. O zelador do seu prédio tem na ponta da língua estatísticas do mapa da violência, a vovó que está a seu lado no metrô discorda da generalização negativa sobre os políticos sejam ladrões e cita os melhores parlamentares no ranking do Diap e seu filho de seis anos lhe explica a diferença entre efeito estufa e aquecimento global. Não existe mais conversa casual, aquela prosa arrastada, prolixa e desatenta cujo único objetivo é esse mesmo: falar por falar, num diálogo que não acrescenta, mas também não usurpa nada. Aquela deliciosa troca de desinformação que dá um descanso à mente. hoje em dia, não rola: está todo mundo cheio de background. É sempre uma CC (Conversa com Conteúdo). Um inferno.
(...)
Fui tomar um café na padaria no centro histórico e perguntei despretensiosamente ao rapaz que me atendeu se os andaimes nos prédios do outro lado da rua tinham a ver com algum projeto do governo para revitalizar os casarões. Perguntei apenas por perguntar, enquanto esperava que ele servisse o cafezinho. Ele enxugou o suor que fazia bolhinhas na testa com a costa da mão direita e ironizou: “Estão revitalizando isso aqui há 30 anos, minha senhora”. Disse isso e despertou seu lado comentarista político subsidiado pelas novas tecnologias da informação e comunicação. Disparou a fazer previsões nefastas para o futuro dos comerciantes da área, criticou a ineficiência o transporte de massa e vaticinou: - Na Copa, com essas manifestações todas, a gente vai ficar é no prejuízo, que turista nenhum vem pra cá receber gás lacrimogêneo pela cara. Tomei o café e saí exausta. Tantos problemas sociais, meu Deus...
***
SEXTA-FEIRA HEREGE
Por Bia Triz
O trânsito impedia
A pontualidade, quem diria?
Prevaleceu à companhia
Talvez o sorriso estivesse ausente
Talvez o sol se escondesse
E o dia se perdesse
Cinquenta e duas horas de jornada laboral
Uma semana em espiral
O pensamento, um temporal
A sexta tão esperada
guardava a espera pelo comensal
A carne, bem guardada,
aguardava um tempero original
Uma ilusão à toa, uma esperança banal
A reunião, a hora, a ordem, tudo, um empecilho maioral
Que importa a espera?
Que importa o querer?
Para quê tanta superação?
Treze horas e a exaustão
Dá-se um jeito, um tempinho
Foi a combinação
Vai-se ao mercado, compra-se o pão
O queijo, o cacau
Não foi essa a combinação?
Se há o desejo, não há amolação
Não carece explicação
E quantos minutos mesmo faltavam para a sexta?
Para assistir à aparição?
Tolice crer que a agenda do outro guardava a mesma motivação
Tanta alegria, tanta emoção
Se agora é deserto, que eu morra de insolação!
Sem tristeza, sem dor, sem irrigação.
***
TROVOADA NO CHUVEIRO
Por Bice Triz
Não me lembro de ter passado um tempo tão determinada a fazer alguma coisa, e até então, ou talvez, por fim, nunca conseguir.
Não me lembro de ter passado um tempo tão determinada a fazer alguma coisa, e até então, ou talvez, por fim, nunca conseguir.
Tenho tentado de todo modo, e apesar do esforço, ainda não obtive resultado algum. Talvez, porque seja coisa não costumeira, ou há tempo desfeita, ou simplesmente, não estejam me deixando fazer. Na verdade tenho vertigens com esta ideia.
O meu enjoo, ao contrário de Álvaro Campos, não é por uma vida interessante, é uma agonia que não deixa a vida passar, que parece desandar, tudo parece se repetir, tudo ficou meio sem graça. Talvez, depois de feita a coisa, eu possa qualificar como interessante, como vida, como movimento, como bom ou ruim, mas agora, não.
Inglês, francês, espanhol, alemão, Escola de Direito, psicanálise, viajar, almoçar, encolher e me esticar, nada, nada, preenche o vazio de fazer, de conseguir fazer. O vazio é pior que o nada. O nada é preexistente, o vazio é resultado.
Fico tão bem prostrada a esta situação, retribuo sorrisos, escolho uma bela roupa, converso sobre todas as outras coisas, realmente me distraio. Chego a esquecer da minha angústia de fazer.
E se hoje eu derramasse a primeira lágrima? E se eu fizesse realmente o que preciso fazer?
Determinada e moderna tenho que cumprir o senso comum e psicanalítico, vou fazer o que devo, preciso urgentemente chorar. Cumprir etapa, relaxar e depois colher motivos para ser feliz, não é assim o século da auto-ajuda?
Tenho todos os ingredientes para o choro. Cheiros, sons e corpos abafados por um ar quente e sufocante, tudo fica esperando, parece o céu quando forma a tempestade, primeiro o vento que sopra constantemente muda a direção, as cores anis tornam-se plúmbeas, os pássaros e insetos somem, as nuvens pesam e se aproximam, o sol desaparece. Cada elemento sabe o que fazer, ficam todos prontos e posicionados esperando o grande espetáculo. E tudo se desaba em água.
Hoje eu derramo a primeira lágrima. Preciso, é isto que busco, estou determinada.
Percebo que não, estou travada, minha trovoada é seca, as lágrimas não têm como ser liquidadas. A tempestade se forma, mas não deságua, não há enchente, não se forma um rio que as leve do meu íntimo para este mar, mundo que me arrasta à sua corrente, debaixo do chuveiro.
***
O CHECK-UP– PARTE 1
Por Bia Triz
Admitamos: fazer 40 anos é um fato que não pode ser desprezado por nenhuma mulher. Ok, os tempos mudaram e no que diz respeito à aparência, está cada vez mais difícil saber quem é mãe de quem. Mas existem os médicos. Esses são implacáveis. Quando tinha 39, fui ao oftalmologista.
Admitamos: fazer 40 anos é um fato que não pode ser desprezado por nenhuma mulher. Ok, os tempos mudaram e no que diz respeito à aparência, está cada vez mais difícil saber quem é mãe de quem. Mas existem os médicos. Esses são implacáveis. Quando tinha 39, fui ao oftalmologista.
- O que lhe traz aqui? – sempre que ouço essa pergunta fico em dúvida sobre o que o doutor prefere ouvir: vim de carro? Metrô?
- Está acontecendo alguma coisa estranha comigo porque sempre enxerguei muito bem. Agora, só consigo ler jornal quando estou de óculos.
- Quantos anos mesmo você tem?
- Trinta e nove.
O sujeito deu uma gargalhada capaz de aniquilar uma coleção de cristais suecos da Kosta Boda.
- Está com três-ponto-nove e acha ‘estranho’ não estar lendo bula sem óculos?
Além de cega, me senti uma anta. Mas, passemos.
Depois de sair da casa dos ‘3.9’, a coisa piora. O clínico exige um check-up. Até aí, nada demais, é até bom saber como anda o ‘organismo como um todo’. Mas o fato é que fazer o check-up implica marcar diversos exames, fazer diversos exames e ir buscar o resultado do inferno dos diversos exames.
Cena 1 – Ginecologista
A conversa começa sempre como aquela canção de Chico: olá, como vai, tudo bem, eu vou indo e você?... Você se prepara – leia-se tira a roupa, inclusive a que cobre as partes pudendas, põe o roupão (agora descartável e absolutamente transparente), deita na maca ginecológica para ser examinada. Claro, faz aquele ar de quem está bem à vontade com a ajudante da médica que não consegue disfarçar a curiosidade sobre sua, digamos, periquita. Você nota, mas finge que não está nem aí, afinal, ela também tem uma – com a diferença que no momento está bem coberta e a salvo de olhares.
Você fica ali, com as pernas caprichosamente amparadas cada uma em um suporte – um a leste e outro a oeste – recebendo aquele ventinho frio numa região pouco acostumada com essa corrente de ar frio tão direcionada. Quando as mãos da médica estão devidamente higienizadas, enfim, o exame terá início.
O celular dela toca. É o filho. Ela começa a imprimir à voz aquele tom idiotizado que em geral as pessoas usam ao falar com crianças.
- Ah, o bebê de mamãe desenhou a espada de Harry Potter? E a pró gostou? Como é que é essa espada?
Você continua esperando, com a periquita em avançado estado de criogenização e sob o olhar atento da atendente, que mais tarde você fica sabendo, é recém-contratada. Depois de concluída a descrição detalhada do garotinho de quatro anos sobre o desenho decerto horrendo da espada de Harry Potter, a ginecologista finalmente faz o exame. Evidentemente, ela solicita que você faça outros tantos. Entre eles, a mamografia. Numa descrição breve: é um exame feito com o equipamento que tenta ao máximo transformar sua mama em algo parecido com um misto quente bem fininho. E a técnica que opera a máquina diz sempre um “relaxe”, com um sorriso simpático, enquanto achata o ‘misto’.
Cena 2 – ‘Só as cachorras, as preparadas...”
Depois dos 40 anos, outras partes do seu corpo também requerem cuidados que você nunca pensou em ter, por exemplo, ao pular do calçadão para a areia da praia. Assim como sua outrora invejável acuidade visual se esvaiu, a ‘cartilagem articular da patela’ dos seus joelhos já não é mais a mesma.
- Você precisa fazer um raio-x dos joelhos – sentencia o ortopedista.
Você já fez um? Pois bem. Depois de deitar sobre uma maca gelada e dobrar as pernas nas mais variadas posições, o técnico da radiologia lhe pede em tom solene:
- Agora, a senhora (grrrr!) vai ficar assim: ajoelhada na posição de cachorrinho e abaixar bem o quadril.
Não contente com o pedido quase obsceno – não pela lascívia, mas pela posição aviltante justamente porque não há lascívia no pedido – ele dá o tiro de misericórdia no que resta de dignidade em você:
- A senhora aguenta ficar assim enquanto eu faço a imagem?
Honestidade? Não aguentei.
***
UM VESTIDINHO CURTO E A SAUDADE
Por Bice Triz
Para que, quando e por que uso um vestidinho curto.
Será que à noite usarei para um momento de emergência, ou será de incompetência?
De negligencia ou de anuência? Quem sabe de suprema sapiência, ou pensada imprudência!
Elegante decadência, um surto da inteligência, uma chance para a minha abstinência. Perto da inocência, longe da demência , ou cobrindo uma ausência?
Objeto de maledicências? Inspiração de excrescências! Exercício de paciência... Não, tudo por simples experiência!!!
Experiência de lembrar de uma saudade, de um dia bom, vivido com um vestidinho curto, curtinho e da cor da mostarda, mostarda do oriente, o vestidinho foi pintado por hábeis mãos de lá, e tirado com amadas mãos daqui...
A saudade não cabe em um vestidinho curto, cheio de lembranças e nuances. A saudade é grande e ensimesmada, e nem por um lance de um sensual cruzar de pernas a calcinha aparece, o seu decote não descobre os seios, na verdade não é um decote é um nó na garganta, algo que só eu posso folgar e me despir da incerteza de amar.
***
RECADO PARA A SAUDADE
Por Bice Triz
Quando a saudade chegar, diga a ela que tudo bem, não precisa machucar. Mostre que ela é legítima e tem todo direito de vir e ficar, diga a ela, também, que nós sabemos o seu significado, já percebemos o seu valor, apesar de não aceitarmos a sua presença. Não se esqueça de dizer que ela é irmã gêmea da que me procura. Fale que sempre lembramos dela quando nos encontramos, portanto ela não precisa ser tão implacável, mostre sua importância, diga que já percebemos, ela terá sempre lugar em nossas vidas, mas, sem lágrimas. Deixe claro: ela precisa muito de nós. Lembre que ela é fruto de uma ventura linda e rara, e deve respeitar o mundo que lhe foi criado: entre tantas saudades bobas e vulgares ela é sem dúvida uma afortunada.
Quando a saudade chegar, diga a ela que tudo bem, não precisa machucar. Mostre que ela é legítima e tem todo direito de vir e ficar, diga a ela, também, que nós sabemos o seu significado, já percebemos o seu valor, apesar de não aceitarmos a sua presença. Não se esqueça de dizer que ela é irmã gêmea da que me procura. Fale que sempre lembramos dela quando nos encontramos, portanto ela não precisa ser tão implacável, mostre sua importância, diga que já percebemos, ela terá sempre lugar em nossas vidas, mas, sem lágrimas. Deixe claro: ela precisa muito de nós. Lembre que ela é fruto de uma ventura linda e rara, e deve respeitar o mundo que lhe foi criado: entre tantas saudades bobas e vulgares ela é sem dúvida uma afortunada.
***
BART
Por Bice Triz
Peço licença a todos para tentar esclarecer os precedentes de Bartleby. Aquele singular escriturário que teve uma passagem de sua vida magnificamente descrita por Melville, que é entre todos os possíveis leitores desta narrativa, o que menos se incomodará com os deslizes e imprecisões de uma escritora amadora. Ele sempre soube que para alguns o fundamental é escrever.
Tenho como trunfo a vontade clara e franca de criar, que me dominou completamente logo após saber que Bart, o chamarei doravante desta forma carinhosa, antes de se tornar escriturário, trabalhou na Seção de Cartas Extraviadas no Correio.
Da mesma forma que Melville não pôde deixar de refletir sobre tal fato, eu estou ansiosa em minhas reflexões e inflexões, só que ele não tinha mais tempo para dizer nada, estava na última página do livro, e eu ao contrário, estou na primeira.
Nos arredores de Washington, em um bairro de operários, vivia um senhor inglês e seus três filhos. Casou-se em Londres e resolveu imigrar para a América.
O patriarca quando chegou conseguiu um emprego nos correios tornou-se carteiro encarregado da entrega das cartas que chegavam com urgência, trabalho que exerceu durante todos esses anos. O filho mais velho para susto e melancolia dos pais voltara para a Inglaterra aos quinze anos, junto com o padrinho que trabalhava para a coroa inglesa.
O segundo logo se casou e também se mudou.
O filho caçula, Bart, ficou com os pais. Fazia companhia à mãe ou, talvez, nem fizesse. Pareciam com os verdadeiros confidentes, não falavam. Ambos de poucas palavras, donos do silêncio dos amigos e dos cúmplices.
Ficou em companhia da mãe até o último de seus dias, mergulhado em pensamentos entre paredes brancas e frias como eles. Ela era uma mulher pálida, magra, que quase não se alimentava, exceto por alguns bolinhos e arroz sempre levados no gengibre. Sempre em silêncio, ficava horas na cozinha observando a parede branca e a mancha de gordura junto ao fogão. Escutava o silêncio absoluto e via muito mais que paredes brancas e suas manchas. Quando sua mãe começou a ficar cada dia mais fraca, ele ficou mais silencioso, se é que há algo mais silencioso que o seu impregnado silêncio. Sabia que sua mãe era um ser fugaz, e tinha consciência que nada poderia ser feito.
Veio o dia em que sua mãe morreu. Nesta manhã escura, seu pai tinha saído cedo para o trabalho. Bart, da cozinha, tirou, momentaneamente, seus olhos da imensidão branca e viu sua mãe recostada na cadeira de braços na sala. Seu olhar era de longe, o foco de sua visão passava pelo espaço aberto e branco da cozinha, seguido do corredor escuro e por fim a mãe na poltrona iluminada pela claridade tempestuosa da janela. Ele olhou, entendeu e gostou do nascimento de um novo silêncio e da palidez inaugural das faces de sua mãe. Depois deste rápido olhar, voltou-se para sua parede branca. E assim permaneceu durante horas, horas claras e horas escuras. Seu pai estava fora nesse período, às voltas com entregas urgentes e só pôde enterrar a mulher dois dias depois.
Quando por fim sua mãe saiu da sala, ele não entrou mais na cozinha. Ficou em seu quarto junto à janela, olhando para o céu, e o céu olhando para o infinito dos seus olhos. Mas, apesar de tudo não parecia um ser melancólico.
Aceitou a sugestão de seu pai para ir trabalhar nos correios. Trabalhava muito, e todos os dias ficava até tarde. Quando todos saíam, ele parecia acelerar o ritmo. E, se resolvia parar para descansar, não fazia a menor cerimônia em diminuir os trajes e mais à vontade deitar-se sobre a grande mesa de distribuição. Com o passar de alguns meses era visível a melhora e o bom desempenho do seu setor.
Trabalhava na Seção de Cartas Extraviadas. Havia um prazo de dois anos para serem reclamadas. Ele as separou por ano, fazendo um longo arquivo aonde ia colocando as cartas mais novas atrás das mais antigas, cada ano um arquivo. Passava parte do dia arquivando as que chegavam para o corredor da morte, tinham dois anos para provar que deveriam existir, e alguém recorrer por elas. E a outra metade da jornada abrindo os envelopes que completavam o triste período do corredor da espera, ao abrir fazia a última confissão dessas cartas que deveriam cumprir finalmente a sua pena de morte. Tornou-se um confidente dessas cartas. Algumas quando tocava e percebia a aliança e começava a imaginar o desencontro e sofrimento do remetente e do destinatário, outras com dinheiro espremido para salvar de dificuldades, ou até mesmo da fome e do frio. Fotografias de pessoas e lugares davam corpo e momento para a saudade, para o desejo, suas cores e geografias revelavam a distância e o tempo.
Com o tempo não voltava mais para casa, ali era o seu mundo. Um mundo de desencontros, de desejos não escutados, um mundo de silêncio, onde ele preferia ficar.
Trabalhou dos dezessete aos trinta e quatro anos nos correios. Metade da vida em silêncio entre as paredes brancas da cozinha, a outra entre as cartas.
O Correio sofreu uma grande reforma administrativa, em conseqüência Bart foi demitido.
Ele foi retirado, ou melhor, ele foi carregado e posto para fora do prédio dos correios por seu pai e o chefe superior que eram amigos antigos do trabalho. Bart recusava-se a deixar o local. Eles não compreendiam como um rapaz jovem devaneava solitariamente, sem nenhum arroubo juvenil:
- Gosto de Bart, mas ele me deixa em situação complicada...
- Sei disso, lembro-me do dia que minha mulher morreu, ele não tomou nenhuma providência, parecia que nada tinha acontecido “preferiu deixar as coisas como estavam”.
- É... Como pôde, dois dias com a falecida sem procurar ninguém... Lembro-me da vez que solicitei a ele, que recebesse, também, os pacotes extraviados, esses, ao contrário das cartas, deveriam ser devolvidos. Simplesmente respondeu: “Se for para devolver ao correio central, prefiro não fazer”. Reclamei com ele, falei que iria demiti-lo, que mesmo a nossa amizade e consideração não seriam suficientes, afinal o correio precisava de ordem.
- Eu bem sei que ele não cuidou dos pacotes. Talvez, seja uma pessoa de grande voluntariedade, de grande caráter e personalidade e o destino lhe reserve uma grande prova...
- Você é pai, mas eu prefiro não pagar para ver...
Quando demitido permaneceu quieto junto a algumas cartas que seriam destruídas. Estava de pé ao lado de sua escrivaninha, a gaveta aberta mostrava um pote de vidro largo, como uma sopeira, cheio de alianças, crucifixos, cabelos, umbigos... A ordem era queimar as cartas, quanto aos objetos que vinham juntos, ele preferia guardar.
Lia as cartas sem nenhuma expressão no rosto, o que poderia parecer uma curiosidade e mais nada. Era mais do que isso. Ele lia, absolutamente, todas as cartas. Às vezes parecia que algumas que estiveram juntas naquele arquivo se procuravam, mas quando descobertas, o destino dos remetentes já estava selado. Impossível recuperar a carta antes incinerada, e que ele, agora, de memória associava que essa outra a esperava. Parece-me que isso lhe dizia algo. O deixava nesse dia mais quieto. Mas, só isso, jamais perdeu a sua elegância no tratar e no falar, nem a sua emérita calma.
Algumas poucas cartas, mas suficientes para serem dignas de registro, tinham o mesmo endereço para o remetente e o destinatário, e às vezes o mesmo nome. Ambos os endereços eram ilegíveis, iguais é verdade, mas total e duplamente indecifráveis. Estas cartas desde o início estavam fadadas a não ser nada mais que um desabafo solitário do autor, mesmo que fosse de qualidade, nada venceria interferências menores; uma distração no endereçamento, ou a ignorância postal do emitente. Outro tipo de correspondência que ele preferia não ter encontrado, eram as que estavam mal copiadas; endereços insuficientes, letras borradas e ilegíveis, isto falando apenas dos envelopes. Leu muitas cartas mal escritas que mesmo que chegassem aos seus destinatários de nada adiantaria, ficariam sem saber se eram amados, se as coisas andavam bem, se prometiam ou não esse algo mais que partimos para buscar e, muito menos se haveria voltas, encontros e reencontros.
Leu inúmeras cópias de poesias trocadas, mal interpretadas, onde “os olhos negros da noite” causavam uma crise de ciúmes, o que aliás, só Bart sabia, quem escreveu a carta poética ficou sem resposta, talvez uma sorte, ficar sem saber que a escuridão da noite, com a qual ele sofria e lembrava da amada era objeto de seus ciúmes. Outra respondeu: “se você ama a Valquíria que está dentro de mim é melhor que me esqueça e fique com toda essa tal de Valquíria ...”
Depois que foi demitido, não soube encontrar seu antigo espaço em casa, apesar dos esforços e tentativas do pai para estabelecer com Bart conversas parecidas com o que o filho tinha com a mãe, deixando a praticidade de lado, começou a ser mais delicado na escolha dos assuntos e das entonações. Tudo que obteve de volta foi: - Papai, prefiro o senhor à sua maneira.
Decidiu que iria para uma cidade avançada, com livros e bibliotecas. Resolvera que seria copista em uma biblioteca ou universidade. Trabalhar com todo cuidado e acabar com os enganos causados por uma cópia mal feita.
Nesta grande cidade não conseguiu o emprego desejado, apesar de muito procurar e provar seu conhecimento e capacidade para lidar com os livros. Desanimado, quase em estado de inanição e sem ter onde dormir, prometera a si mesmo que se arranjasse um emprego naquele dia, esqueceria seu íntimo orgulho de ler tudo e sobre tudo, de querer viver entre os livros, e que se limitaria a ser um silencioso e criterioso copista.
A parte seguinte da história vocês já sabem foi contada com melhor êxito por Melville, parece-me que só mais um detalhe, devo esclarecer, Bart como revelei parou de ler, fazia apenas cópias, e nem suas cópias ele lia. Mas, quanto ao porquê de Bart, posteriormente, parar de copiar prefiro não escrever.
Soube pelo menino que lhe entregava as refeições no escritório, que Bart trazia no bolso uma carta da época que trabalhava nos correios e desejava encontrar a destinatária, o conteúdo nunca se soube. Depois de procurá-la pela primeira vez, voltou para o escritório com os olhos empedrados, duros como vidro e a pele fria, fria como uma parede branca...
Não sei o quê aconteceu com ele neste encontro, posso, apenas, imaginar um abismo entre sua expectativa e sua realização, isto é se lhe ocorreu qualquer destes sentimentos alguma vez na vida...
Mas, já estou na última página do meu relato e não me resta muito tempo para falar de sentimentos e de emoções, prefiro não continuar.
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DOMINGO
Por Bia Triz
Jornal, cigarros, café e maracujá. Tudo para ter um domingo perfeito. Leitura estressante, fumaça relaxante. O menorzinho para excitar e o suquinho para tranquilizar. Não precisava sair de casa. Nenhum contato humano consumiria um recurso tão nobre e em vias de extinção. Paciência. Jogos de adultos, seduções óbvias, falsidades mal disfarçadas, elogios por conveniência. Humanos. Estava cansada.
Dinheiro não traz felicidade. Felicidade também não traz dinheiro. Conclusão: bom mesmo é ser feliz mesmo sem dinheiro. Boa filosofia. Boa porcaria. Tão sublime quanto inútil. Estava cansada. Com fome de comer coisa gostosa. Só de pensar nos restaurantes. Melhor fumar. Sempre o mesmo script. O pai vai almoçar com os filhos do último divórcio. Moças em busca de maridos, fingindo que não. Fazem um ar blasé quando sentam dois rapazes na mesa vizinha. Dez minutos. Trocam olhares. Mais olhares, mais cúmplices. Um deles deixa escapar. “Amor...” Bonitos. Gays. Também há sempre aquela mulher um pouco mais velha que a de Balzac. Inteligente, culta, articulada. Lê Sartre , Machado e Hemingway. Carro zero, apartamento quitado, já fez doutorado. Chega acompanhada. Produtor cultural. Erudito, viajado, gosta de ópera, MPB, curte pop music, eclético. Já leu Dostoievski, Hesse, Joyce. Um cara divertido, bom ouvinte, compreensivo. Adora Gal, Pink Floyd e o namorado. Até a falta de motivos para dar os dez por cento pro garçom. Tudo a mesma coisa. Melhor ficar em casa. Vida besta. Óbvio ululante, Nelson tinha razão. Nem um cunhado tinha para fantasiar um capítulo de A vida como ela é. Cansada. Férias, precisando de férias. Férias da vida.
Isso, sim. Arrumar o armário. Liga o som, quer começar a rasgar a papel. Caixas e mais caixas. Poeira. Traças e mais traças. Para quê esse extrato? Primeiro salário. 1985. Como foi mesmo? O ar solene: brasileira, solteira, residente no Rio de Janeiro, etc, etc, concedo à senhora trabalhadora fulana de tal o seu primeiro salário. Alguém disse isso? Hum. Então, parabéns!? Sei. Não, claro que não. Ridículo. Ninguém disse. Nem o sabor da estréia bancária lembrava mais. Que serventia tinha guardar aquela porcaria de extrato. Outra caixa. Papel, papel, papel, fotos. Fotos. Uma, do seu amor. Já fazia tempo. Amor, meu grande amor... Não chega mesmo. Bobagem de hora marcada. Hora. Hora é coisa que contraria a gente. Corre quando a gente quer o tempo sem horas, e se arrasta quando a gente quer horas sem tempo.
Grande amor. Aquele olhar expressivo. Da mais doce candura à mais grave grossura. Olhar sem cílios, olhar de lírios. Olhar sem lagos, olhar de cactos. Pele de índio. Dia de índio. Índio quer apito. Índio quer. Boca de grande amor. Boca mar, boca paisagem, boca beleza. Boca linda. “Uma boca que eu sei”. Boca certa. Mãos. Mãos bocas. Mãos bobas. Mãos boas. Cabelo bonito. Cabelo gostoso. Cabelo do meu amor gostoso. “Quem disse que cabelo não sente?” Calor, carinho. Sente. Saudade. Sente. Que é isso, outro extrato? Merda! Saudade não traz felicidade. Dinheiro não traz meu amor. Amor não enche barriga. Barriga vazia. Fome de coisa gostosa. Fome do meu amor. Dinheiro não traz felicidade. Cigarro, jornal, café. Saudade, traz o meu amor?
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A ARTE NO VERSO DO QUADRO
Por Bice Triz
Um verso no verso, um reverso
Um verso no verso, um reverso
Um inverso reverso de um quadro
O universo de cara para a parede
Vai morrer de fome e de sede, vai penar
Vai sumir, vai apagar sem um olhar
Encostado na parede fria vai esquecer o que dizia...
Por tristeza ou anônima alegria
Não terá quem leia, nem quem ria
Um castigo infantil de cara voltada para a parede
Divisão atada não diz mais nada
Não sabe ao certo o que fez
Desde o começo é pura insensatez
O verso revirado está virado
É o finito do poema esquecido
De um caso não acabado
Não tem mais sonho, nem olhar amigo
Sua voz perdeu abrigo...
Agora que ninguém o lê, chegamos ao fim
De castigo, condenado a viver assim
Saiba, reverso inverso, é você o verso que há em mim.
***